Por Carlos Alberto Bueno

Mestrando em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná

Gestos de saudação, cortesia, ou reverência são componentes constitutivos da rotina de treinamento de praticantes de artes marciais e de esportes de combate, podendo se apresentar de maneira mais informal ou mais ritualizada. Nas artes marciais chinesas, denominadas wushu, tais gestos podem ser realizados, por exemplo, no início e no encerramento de uma sessão de treinamento, assim como ao começar e terminar um combate ou um taolu (sequência pré-determinada de movimentos, como o kata no karate, ou o poomsae no taekwondo).

A meu ver, a execução de um gesto ritualizado de saudação ou mesura, ao iniciar uma sessão de treinamento, “dá o tom” do padrão de comportamento que deverá se estabelecer no wushu guan (local de prática de wushu). Me parece que fica claro para um praticante, mesmo que inconscientemente, que uma conduta posterior inconsistente com esse primeiro momento corresponde à rejeição dos códigos partilhados pelo grupo, o que pode implicar em dificuldades para a integração do sujeito. Com efeito, a par de seus aspectos restritivos e ordenadores, esses gestos acenam no sentido da cooperação e de uma convivência mais harmônica entre os praticantes.

Em meio às diferentes artes marciais chinesas, vários gestos de saudação e de mesura são empregados. Aproveitarei o ensejo para discorrer brevemente acerca de alguns aspectos de um cumprimento que é utilizado por muitos dos sistemas marciais chineses, qual seja – o “baoquan li” 抱拳礼. Baoquan, em mandarim, significa “envolver o punho”. Li denota ações cerimoniais e de cortesia. O gesto é realizado ao se cobrir o punho direito com a palma da mão esquerda – vide figura 1.

figura1 (1)

O punho cerrado denota a força, a capacidade combativa, a habilidade marcial. Cobri-lo com a palma sugere que há auto-controle, o que, portanto, indica respeito, cooperação, e paz. Vale ressaltar a importância do auto-controle em espaços onde são realizadas atividades que envolvem o antagonismo físico, e não somente em outras esferas sociais.

A palma e o punho são associados, respectivamente, ao sinograma wen 文, que indica a erudição, a escrita e a linguagem; e ao caractere wu 武, que compõe a palavra que designa as artes marciais chinesas (wushu), e que está relacionado à força e à belicosidade. Para Tang & Wang (2004), a realização do gesto baoquanli significa “estimar o wen e valorizar o wu, cultivar tanto o wen quanto o wu”. Sob esse prisma, cobrir o punho com a palma remete à união das qualidades características dos conceitos wenwu, simbolizando o cultivo do aspecto marcial e do intelecto. Essa perspectiva releva, portanto, o processo formativo do praticante.

Tang & Wang (2004) explicam que a palma e o punho também se associam, no pensamento chinês, a dois princípios opostos e complementares, sendo que ambos estariam presentes no interior de todas as coisas: o yin 阴e o yang 阳 (conceitos oriundos do taoísmo) – figura 2. De acordo com a narrativa de Wong (1999), durante a dinastia Qing (1644-1911) determinados grupos de artistas marciais realizavam uma saudação na qual o punho direito era colocado contra a palma esquerda, sendo que a palma esquerda simbolizava o caractere chinês “lua” yue 月 (energia yin), enquanto o punho direito recordava o caractere “sol” ri 日(energia yang) – figura 3. Wong advoga que naquele período tal saudação foi utilizada como símbolo de oposição ao governo então vigente (Qing), ao sugerir a restauração da dinastia anterior (Ming). Isso porque a junção dos caracteres chineses de sol e lua – a união da palma com o punho – resulta em um outro caractere: Ming明. Nesse caso (seja qual for o período de fabricação dessas representações) são ressaltadas questões de ordem política e ideológica.

figura2 e 3

Há muitos outros conceitos associados ao baoquanli. Os símbolos que se expressam por meio dos gestos corporais, como no caso das artes marciais chinesas, podem divulgar (ou se opor a) determinados valores, aspirações, e ideologias. Essas práticas são reorganizadas continuamente, seja no plano material ou simbólico, a par de mudanças em estruturas individuais e sociais particulares.

Sobre o autor: Carlos Alberto Bueno é membro do Grupo de Estudos Sócio-Históricos de Esportes de Combate, Lutas e Artes Marciais (GESHECLAM). Mestrando em Esporte, Lazer e Sociedade pela Universidade Federal do Paraná. Graduado em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná, com período de mobilidade acadêmica na Universidade de Esportes de Beijing. Faixa preta de Kung-fu Wushu no estilo Fei Hok Phai (Associação Longpao Kung-Fu Wushu, filiada à Federação Paranaense de Kung-fu Wushu), e 3º Duan de Kung-fu Wushu no estilo Changquan, sistema Chinese Wushu Duanwei (Chinese Wushu Association).

Referências:

TANG, Shaojun; WANG, Liming. Jiedu wushu “baoquan li” de zhexue yuanyuan. Shandong Tiyu Xueyuan Xuebao, 2004, p.121-122.

WONG, Doc Fai. La forma correcta de saludar. Tradução: Salvador Reyna. In: Revista Yin Yang de l’Associació Catalana de Tai Chi Chuan, n.6, 1999, p.6.

Imagem inicial: caligrafia de Kam Louie. Extraída de Louie, Kam. Theorising chinese masculinity: society and gender in China. Cambridge University Press, 2002.

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