(Rafael Orlando de Oliveira – professor de Kung-Fu e Sanda e  mestrando do programa de Pós-Graduação em Educação Física da UFPR)

As Artes Marciais treinam o corpo, a mente e o espírito!

A prática de Artes Marciais é direcionada para não-violência!

Os praticantes de Artes Marciais devem ser pessoas pacíficas, que utilizam as técnicas de combate, apenas, em casos de legítima defesa!

Não é só porrada, é filosofia de vida, também!

Nos últimos 22 anos, tempo este no qual tenho me dedicado física e intelectualmente a estudar as Artes Marciais praticadas no Brasil, frases como as supracitadas, dentre uma infinidade de outras com o mesmo sentido, povoam o imaginário de praticantes, simpatizantes e estudiosos dessas práticas milenares.

Tais jargões são também comumente reproduzidos nos grandes meios de comunicação, principalmente na última década, na qual presenciamos uma abertura midiática sem precedentes para as Artes Marciais, em grande parte, gerada pelo sucesso do MMA no mundo.

Obviamente, não poderia me esquivar disso, existe também aqueles que defendem que as Artes Marciais são uma reprodução contemporânea da barbárie de outrora, ou seja, um espetáculo de selvageria humana. No entanto, como eu não entendo de política, falarei daquilo que compreendo com certa profundidade, deixando de lado o que não me serve, pois não faz sentido algum.

Voltando às afirmativas que direcionam para uma compreensão da prática marcial como um modelo de formação humana – ideia com a qual me ajusto – gostaria de fomentar tal debate apresentando a possível origem desse imaginário ocidental. Nesse sentido e guardado os devidos limites do meu conhecimento a este respeito, apresentarei a seguir os princípios filosóficos que permeiam a prática do Kung-Fu (功夫), estilo Shaolin do Norte (北少林), praticado no Brasil.

O Kung-Fu Shaolin do Norte – arte marcial chinesa (武術), introduzida no Brasil na década de 60 pelo Grão-Mestre Chan KowkWai, herdeiro direto e pertencente à oitava geração de professores do estilo – trouxe consigo um “elemento iconográfico que expressa os valores ideais e os ensinamentos filosóficos que compõem o universo semântico não-corporal do estilo” [1]: a Placa Votiva.

Figura 2

Apesar de ser um elemento encontrado especificamente nas academias brasileiras de Shaolin do Norte, a Placa Votiva não está presente em todas. Porém, tenho fortes indícios para acreditar que o conteúdo filosófico que ela expressa permeia toda a história da arte marcial chinesa, que, por sua vez, pode ter influenciado outros estilos de artes marciais desenvolvidos em outras culturas [2].

A Placa Votiva, normalmente, encontra-se incorporada ao altar – local de destaque tradicionalmente encontrado nas academias brasileiras do estilo Shaolin do Norte. O altar parece possuir duas finalidades: “uma de cunho institucional-normativo (destinada à orientação de uma linha de conduta) e a outra, de cunho religioso (voltada ao culto dos antepassados)” [2].

Figura 3

A placa é composta exclusivamente por ideogramas chineses arcaicos, que “estão         dispostos de acordo com uma configuração ‘clássica’, que implica em um sentido mais simbólico que o da escrita comum” [1]. No entanto, o conteúdo teórico-filosófico da placa é transmitido aos praticantes através dos professores, que o utilizam com o propósito de embasamento e legitimação dos conteúdos práticos, perpetuando, deste modo, a tradição oral do estilo.

Figura 4

Como é possível observar, o conteúdo da placa remete a valores confucionistas e a referenciais histórico-geográficos budistas [*]. Os personagens que aparecem imortalizados na placa também estão relacionados ao Confucionismo, pois são considerados homens e/ou heróis de guerra que seguiram e transmitiram fielmente esses ensinamentos, e transformaram-se em modelos de conduta da tradição marcial chinesa [2].

Contudo, destacarei apenas os elementos que, defendo, remetem a um modelo de formação humana ou, de um Homem Superior, através da prática marcial chinesa.

1

(1) – Título – Os ideogramas de “abertura” da placa do Shaolin do Norte (leitura da esquerda para a direita) são, seguramente, a melhor indicação do direcionamento confucionista desse elemento iconográfico. Literalmente, segundo o médico acupunturista Pan Yi Bo (tradutor), os ideogramas podem ser traduzidos por algo como “Mestre Exemplar, Modelo Eterno”, título tradicionalmente atribuído a Confúcio.

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(2) – Código Ético 1 – Nessa coluna (leitura de cima para baixo), segundo o tradutor, está delineado o papel do verdadeiro mestre de uma arte marcial. Literalmente, os ideogramas poderiam ser traduzidos por algo como “Ensinamento de Cultura, Filosofia e Artes Marciais – para Servir o Mundo”. Novamente, a presença é confucionista, ligada, aparentemente, aos valores fundamentais de Reverência Fraternal (Ti), Propriedade (Li), Honradez (I) e Integridade.

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(3) – Código Ético 2 – Nessa coluna (leitura de cima para baixo), segundo o tradutor, está uma afirmação da qualidade da arte ensinada. Literalmente, os ideogramas podem ser traduzidos por algo como “Conhecimento correto, forma, maneira, técnica, princípios – Arte marcial ministrada é original e correta.” Aqui, os elementos se ligam, em um primeiro momento, à afirmação da qualidade do mestre; a “tradução confucionista” se dá pela associação com os princípios de Lealdade (Hsin) – para com os alunos, Propriedade (Li) – dos conhecimentos, Honradez (I) – na afirmação chancelada, por escrito, dos conteúdos que o mestre domina, e Integridade (Lien) – na correção e originalidade dos ensinamentos.

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(4) – “Oferecer” – Aqui, mais uma vez, está presente um elemento confucionista. “Oferecer”, sem dúvida, remete ao mandamento confucionista de “Servir o Mundo”.

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(5) – “Servir” – A palavra é a própria essência do Confucionismo, na razão em que remete à virtude e ao desprendimento como qualidades fundamentais ao ser humano correto.

A Educação Formal – esfera da Formação Humana – se legitima através de um discurso que a enquadra como um processo formativo que objetiva a tomada de consciência, transformando indivíduos em sujeitos de sua própria história. Em outras palavras, isto significa impregnar o mundo com sua própria presença, deixando nele as marcas conscientes de suas ações [3].

No caso do modelo de formação humana através da prática do Kung-Fu, a tomada de consciência se dá através de um conjunto de exigências físicas, ideais e espirituais que objetivam a formação de um Homem Superior – com corpo, mente e espírito conscientes.

Os ideais e ensinamentos filosóficos expressos através da Placa Votiva parecem direcionar para a compreensão de que o objetivo primordial das práticas marciais é a forja de um Ser Superior – que tanto na vida privada, quanto na pública; em tempos de guerra ou de paz; rege sua vida por normas certas de conduta, alheias ao comum dos homens [4].

Sem deixar de lado todo o processo de ressignificação que as artes marciais, independente de suas origens, sofreram ao serem inseridas no Ocidente, defendo que, ainda assim, elas podem ser compreendidas e aplicadas como modelos de formação humana, no sentido mais holístico do termo.

REFERÊNCIAS

[1] APOLLONI, Rodrigo Wolff. Shaolin à Brasileira: estudo sobre a presença e a transformação de elementos religiosos orientais no kung-fu praticado no Brasil. Dissertação (Mestrado em ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2004.

[2]OLIVEIRA, Rafael Orlando de. Paidéia à chinesa?:a formação do indivíduo através da prática do Kung-Fu. 2006. Monografia (Educação Física) – Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2006.

[3] FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1976.

[4] JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

Notas de Fim

[*] Referenciais histórico-geográficos budistas expressos na Placa Votiva: elementos do (7) ao (13).